sábado, 17 de abril de 2010

(2010/011) Comentário a Sinais (I)


1. Sigamos em frente, enquanto Daniel trata de se desincumbir do volume de afazeres que deve explicar seu silêncio constrangedor... Jutifico-me, portanto, em começar o comentário ao texto fundamental de Carlo Ginzburg, postado como inauguração de Perquirese.

2. Sinto-me muito à vontade diante de Sinais - raízes de um paradigma indiciário. Minha "espcialidade" no campo da Teologia - sou doutor em Teologia pela PUC-Rio - é a exegese da Bíblia Hebraica. Pratico a exegese em sua formulação histórico-social, que, por sua vez, consiste num desenvolvimento mais recente do método histórico-crítico (século XVII e XVIII). A abordagem histórico-social pressupõe o método histórico-crítico, mas avança para as questões sociais que perpassam a redação do texto. Eu não diria que o método histórico-crítico fosse ingênuo, como aqui e ali se quer fazer com que pareça, como se o método trocasse a realidade social por trás da redação das perícopes biblicas pela narrativa em si. Todavia, a abordagem histórico-social explicita que a exegese não se assume como "simples" trabalho crítico-literário, mas ambiciona converter-se em auscultação histórico-social do horizonte de produção de determinada narrativa.

3. Antes de ler Sinais, eu considerava que meu trabalho era, sobretudo, schleiermacheriano, isto é, que estivesse sobretudo interessado na intenção do autor (intentio auctoris - cf. Interpretação e Superinterpretação, de Umberto Eco, que, por sua vez, prefere uma aventada intentio operis que, a meu ver, deve satisfações de suas condições de possibilidade). No campo da exegese latino-americana, contudo, essa "opção metodológica" sofreu severas críticas, e foi vítima de programáticos ataques, dentre eles, talvez o maior, o livro Hermenêutica Bíblica, de José Severino Croatto, que, todavia, anos depois, dedicar-se-ia à reconstrução das camadas histórico-sociais (releituras) de Isaías e à Fenomelogia da Religião. Em 1984, contudo, tratava de classificar a exegese como "fraude teórica", afirmando que não passava de "eisegese" e "produção ideológica de sentido".

4. Imediatamente posicionei-me contra a tese de Croatto, que me valia críticas de amigos de profissão, até de amigos muito próximos (a "moda" da época era a "produção de sentido", como a de hoje é a "pós-modernidade"). Alguns me consideravam "positivista", outros, mais amenos, "neo-positivista". Não deve ser coincidência que o mesmo rótulo tenha sido afixado à testa de "Morelli", porque também ele "cismava" que podia entrever, nos detalhes (no caso dele, de pinturas), "marcas" - sinais! - de mãos humanas muito precisas - identificáveis até...

5. Depois que li Ginzburg, permaneci schleiermarchiano, porque em certos sentido e limites, Ginzburg também o é. Mas houve uma evolução no enquadramento da atividade exegética que eu já operava. Antes de ler Ginzburg eu já praticava a leitura "venatória" - a caça! -, já operava nos termos do paradigma indiciário, e foi isso que me fez "recusar" o veredito de Croatto. Ao lado da medicina, da política forense, da história, da arqueologia, da caça, também a exegese é uma atividade indiciária, com todas as suas virtudes e todas as suas insuficiências.

6. Assim como Morelli tratabalha com os detalhes dos quadros, é exatamente assim que eu trabalho com a Bíblia Hebraica. Antes de tudo, dando pouco valor ao que a tradição tem a dizer sobre os textos bíblicos. As tradições foram construídas durante os séculos da Idade Antiga e Medieval, sob os regimes epistemológicos próprios dessas eras, e estão carregadas de marcas pré-modernas, pré-críticas, de erros grossseiros, de falsificações políticas, de elaborações devocionais. Logo, salto por cima da tradição (é por isso que tenho profunda desconfia de Gadamer), e assumo o lema kantiano: sapere aude. Entro no texto bíblico para reconstruir o ambiente que o produziu, para, reconstruindo o ambiente que produziu o texto, compreender o texto a partir do ambiente que o produziu (aqui, nesse exato ponto, me vem à mente o gênio de Edgar Morin!, porque há um elemento de complexidade nessa atividade de, por meio de um, reconstruir o outro que, por sua vez, é o meio de reconstrução do primeiro - indico para o inadjetivável colosso moriniano: O Método).

7. Eu ainda me ressinto de uma demonstração irrefutável de minha prática. Ainda dependo da retórica de Relações de Força - e sei que é pouco. Talvez eu seja vítima, também, da arrogância que foi arrostada ao trabalho de Morelli. Seja como for, o texto bíblico tem muitos indicativos, muitos indícios, que ajudam a construir sua base de redação. Felizmente, a Bíblia Hebraica constitui-se de uma quantidade considerável de textos, de modo que se pode construir uma fenomenologia semântica razoavelmente segura, ainda que não se possa datar de modo absoluto cada faixa de significação dos termos tratados. No entanto, como se faz na arqueologia, referenciais cruzados podem ser datados mutuamente, principalmente se, para um dos referenciais, posui-se uma datação absoluta segura.

8. Mas, por exemplo, se você trata as ocorrências de nidda' (menstruação) na Bíblia Hebraica, selecionando e traduzindo todas as ocorrências do termo, você se dá conta de que há conjuntos de significações - do campo fisiológico e do campo político-religioso - que, à luz das datações médias dos textos em que ocorrem, podem ser explicados como evolução terminológica - uma histórica social do termo, por assim dizer. Munido dessa informação de conjunto, a exegese pressupõe conseguir base para compreender, à luz de estruturas de tempo e de política mais amplos, uma determinada passagem bíblica.

9. Não é que o texto se desmonte e dê lugar a uma série de termos flutuantes. Não - isso seria uma piada de mau gosto. Muito pelo contrário, a exegese deve trabalhar com a unidade textual inteira, intacta, sem dissolvê-la em sobredeterminações de termos quentes sobre termos frios - por exemplo, tomar uma profecia de Isaías, manejar um termo da profecia, e criar explicações ditas exegéticas, mas que sometne se sustentam sobre aquele termo, mas não resistem ao confronto das exigências sistêmicas quer dos outros termos da profecia, tomados isoladamente, quer do conjunto dos termos que a constituem. A exegese é trabalho eminentemente sintático - ou não é exegese. No entanto, é o rigor com a leitura e o respeito ao detalhe, ao papel de cada palavra, de cada relação sintática, de cada relação estrutural que dá ao trabalho exegético a segurança retórica de, ao término de seu trabalho, conquanto não possa "provar" indiscutivelmente, laboratorialmente, a sua tese, pode assegurar a viabiliade retórica da explicação/reconstrução plausível do texto.

10. Sim, o exegeta é um ogro faminto. Eu tenho muita fome de carne humana. Canibal, não leio palavras antigas - como carne, chupo ossos e lambo pele humana há muito embrulhados em rolos antigos...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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