sexta-feira, 23 de abril de 2010

(2010/012) Comentário a Sinais (II)


1. Meu segundo comentário ao trecho transcrito de Sinais. Dessa vez, ao seguinte parágrafo:

"Apesar desses resultados, o método de Morelli foi muito criticado, talvez também pela segurança quase arrogante com que era proposto. Posteriormente foi julgado mecânico, grosseiramente positivista e caiu em descrédito. (Por outro lado, é possível que muitos estudiosos que falavam dele com desdém continuassem a usá-lo tacitamente para as suas atribuições). O renovado interesse pelos trabalhos de Morelli é mérito de Wind, que viu neles um exemplo típico da atitude moderna em relação à obra de arte – atitude que leva a apreciar os pormenores, de preferência à obra em seu conjunto. Em Morelli existiria, segundo Wind, uma exarcebação do culto pela imediaticidade do gênio, assimilado por ele na juventude, no contato com os círculos românticos berlinenses. É uma interpretação pouco convincente, visto que Morelli não se colocava problemas de ordem estética (o que depois lhe foi censurado), mas sim problemas preliminares, de ordem filológica".

2. Quero aqui me deter na identificação da atenção ao pormenor, ao detalhe, como a marca da modernidade, na arte. Bem, quanto a isso, não o posso dizer. Mas posso afiançar que essa foi e é, ainda, uma marca da modernidade... na exegese. O fato de que há referência no parágrafo a uma atenção filológica da parte de Morelli justificaria a transposição do ambiente da arte para o ambiente da filologia, e, mais especificamente, ao ambiente da exegese.

3. Foi "culpa" da Reforma, inoculada pelo vírus árabe-aristotélico-renascentista, a leitura da Bíblia por outros que não um clero programaticamente interessado em tão-siomente regurgitar a Tradição, a Norma o Todo. O resultado não foi outro que não a emergência da crítica bíblica, já desde o próprio século XVI, com sucessivos avanços e aprofundamentos nos séculos XVII e XVIII. E foram justamente os detalhes - a leitura de versos específicos da Escritura - que produziram, por exemplo, em Jean Astruc a percepção de que Moisés não podia ter escrito o conjunto do Pentateuco, porque inúmeras passagens eram indiscutivelmente posteriores. Assim, como afirma Ginzburg a respeito da nova técnica de identificação de autoria de obras de arte, também a autoria das narrrativas bíblicas passou por uma crise de detalhes - a tradição ruiu, fragorosamente, salvo, naturalmente, lá, onde a Igreja manteve as cordas nas mãos.

4. No século XVIII, inicia-se, para as Escrituras, a era áurea da filologia - com um Simonis, por exemplo. De 1750 a 1850, a pesquisa bíblica deixa-se nortear - talvez como nunca mais - pelo viés "exclusivamente" filológico. É o império dos detalhes, cada palavra sendo analisada em seu contexto de origem, em sua dependência traditiva, ao ponto de conservadores assustados e acuados, em face da inter-referência hebraico-árabe em diversos léxicos, exclamarem: "eles querem usar os árabes contra nós"...

5. Após esse período áureo, os conservadores assumiram a nau capitânea. Por mais filológicos que sejam, os léxicos atuais ainda guardam evidências de satisfações teológicas ao "todo", isto é, ao normativo e tradicional, determinado pelas "autoridades". O verbo bará é um caso típico - desde a metade reacionária do século XIX que se empreendeu um esforço hercúleo para apagar a memória filológica do verbo, e tanto que, no século XX, afastaram-se todos os dicionários e léxicos daquele original de Gesenius, das primeiras décadas de 1800 - inclusive as traduções de Gesenius!

6. Mais recentemente, Childs, nos Estados Unidos, mas também há uma forte corrente alemã, apregoam o "canonical approach", que outra coisa não é que a velha norma e tradição, mudando de retórica: mudar tudo para manter tudo como está...

7. Ah, sim, a modernidade marca-se pela crítica. E a crítica, senhores, não se aplica ao "todo" - ao todo se aplica o gosto e, eventualmente, a perspectiva política. A Estética e a Política são perspectivas totalitárias. Já a Heurística, não: ela, para chegar ao todo, deve portar-se de modo indiciário, colhendo pista a pista, decompondo o todo em suas partes constitutivas, de modo, inclusive iconoclasta. Se a critica chegar diante de Deus, há de, primeiro, esquertejá-lo para, depois, julgar se era mesmo Deus... E, claro, não terá sido, como, de fato, nunca o é...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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