domingo, 28 de março de 2010

(2010/003) Reagindo ao 2010/002 do Daniel


1. Meu amigo Daniel. Seu texto "inaugural" é muito bom. Gostei principalmente da relação que você explicita entre paradigma indiciário, micro-história e "Marxismo" de um lado, e, de outro, sua polêmica programática com o Estruturalismo e a pós-modernidade não-fundacional. Essa, precisamente essa, é minha inserção na História. Eu quero, aqui, explicitar minha relação com esse paradigma.

2. Sou basicamente um exegeta, um exegeta histórico-crítico, um exegeta histórico-social. Exegeta, porque lido com um determinado texto histórico antigo - a Bíblia Hebraica (naturalmente que o termo "histórico" aqui traduz a condição física do documento, e não a sua caracterização retórica). Exegeta histórico-crítico, porque me filio à corrente crítico-filológica que tem origens muito remotas - um Lourenço Valla, por exemplo -, mas que consolidou-se entre meados do século XVIII e meados do século XIX. No meu campo de ação - a Teologia - essa corrente crítico-filológica foi alvo de acirrada e severa reação conservadora. Dois momentos reveladores: primeiro, dentro da reação, dizia-se, contra as gramáticas de hebraico, por exeplo, de um Gesenius, por filológica que eram, que "eles querem usar os árabes contra nós" - isso porque a filologia destruía, "impiedosamente", os castelos teológico-alegóricos supostamente sustentados pelo texto bíblico: bastava um sopro da exegese e, puff!, caíam todos, como caem, até hoje. Segundo, a declaração de Nietzsche, em O Anticristo - "todo bom teólogo é um mau filólogo"... Finalmente, histórico-social, porque, para mim, não é o texto quem fala: quem fala é seu autor, discursivamente. Não tenho o autor. Tenho o texto. Texto que é, a um só tempo, mudo e polissêmico. Mudo, porque não fala nada. Polissêmico, porque podemos usá-lo - e disso abusar - para dizer - mas é nós quem o dizemos - o que quisermos...

3. Assim, minha inserção na Exegese é inegociavelmente histórica, científico-humanista, "arqueológica", crítica, historiográfica. Quando li Apologia da História, de Bloch, reconheci-me imediatamente no ogro. Mas, a rigor, não sou exatamente um historiador, conquanto se não me faço historiador, não sou o que digo ser - exegeta. Por outro lado, tampouco um historiador, se não se faz exegeta, bem, não acredito que esse venha a ser um bom historiador.

4. Explico: História e Exegese são especialidades instaladas no mesmo campo epistemológico, teórico-metodológico e paradigmático. Mas são diferentes, em termos de seu objeto. O objeto do historiador, pelo menos o não-não-fundacional, o não-pós-moderno, é o "passado", que, está bem, será "(re)construído" retoricamente, mas cujo critério critico continua sendo não a reconstrução em si, mas o passado que foi, singular e concreto. Já o exegeta tem por objeto não o "passado", na condição de objeto, mas um pedaço dele, um fragmento, um evento dentro dele - um "texto". Destacada a diferença, onde os dois se encontram? No meio do caminho, e no campo de trabalho, quando do trabalho de campo. O exegeta precisa reconstruir o passado, para, inserindo dentro dele o pedaço que tem nas mãos, enteender um em função do outro, e, assim, compreender o seu objeto. Já o historiador precisa reconstruir o passado, e para isso, utiliza-se de um fragmento dele, para, assim, reconstruindo um em função do outro, compreendendo a ambos, compreender seu próprio objeto.

5. O que é objeto para o historiador é meio para o exegeta, e o que é objeto para o exegeta é meio para o historiador. Por isso, Carlo Ginzburg reúne as virtudes que me causam admiração. Por isso, o paradigma indiciário me apaixona, porque dá nome e estrutura epistemológica - tão simples! - ao meu "trabalho". Ginzburg descreve rigorosamente o que eu tento fazer - que é investigar um indício do passado, uma pista do passado, como um caçador, um investigador de política, um arqueólogo - como Sherlock Holmes. Os autores das milhares de perícopes históricas que, enquanto exegeta, tento decifrar são meus Menocchios particulares...

6. Seu texto é um bom ponta-pé. Mais tempo, e comentarei as sessões que me parecem mais relevantes. Por agora, fica o abraço.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Postar um comentário