domingo, 28 de março de 2010

(2010/002) Texto-isca para início da caça!


1. Carlo Ginzburg, nasceu em Turim, o ano era 1939, e o momento era a conturbada situação bélica em que a Europa se via submersa. Não por acaso, o mais tarde historiador e antropólogo, começara, desde o início, a marcar – e ser marcado – a história.

2. Filho de Leone Ginzburg (tradutor) e de Natalia Ginzburg (romancista) estudou em Pisa e logo depois em Londres. Professor das universidades de Bologna, Harvard, Yale, Princeton e da Califórnia seguiu, com distinção, os caminhos da academia planejado por seus pais.

3. De 2006 até hoje é professor de História Cultural Européia na Scuola Normale Superiore de Pisa. Seus estudos nessa área científica o conferiram o rótulo de principal precursor da micro-história. O procedimento que, assim o define hoje, consiste em estudar sociedades camponesas (Andarilhos do Bem, 1966) nos primeiros séculos da modernidade fazendo amplo uso da documentação relacionada à “Santa Inquisição”.

4. O seu objeto era – e ainda o é – estudar as relações dialéticas entre sistemas de crenças religiosas populares e a interpretação dos inquisidores a respeito das heranças legadas aos camponeses de seus cultos agrários – pagãos, na definição exata do termo. A partir desse caminho, tornou-se mundialmente famoso pela obra O queijo e os vermes (1976), onde o protagonista Menocchio, camponês de Valcellina interpreta o mundo à partir de uma certa Volksglaube.

5. Além dessa obra (e outras, ver aqui: http://www.sns.it/it/lettere/menunews/docenti/ginzburg/) que o tornou amplamente conhecido, é em História Noturna (1989) que o estudioso turinense estabelece um quadro comparativo mais complexo entre as particularidades que analisa e um contexto mais amplo. O percurso inicia-se no estudo do evento de caça às bruxas, perpetrada pela “Santa Igreja”, e segue rumo a uma contextualização maior, evidenciando uma grande variedade de práticas mágicas na Europa.

6. Constituem-se, assim, esses indícios, que permeavam elementos da cultura européia e que apontavam para evidências de cultos xamânicos durante toda modernidade na Europa, para Ginzburg, fortes evidências de práticas mágicas como elementos de resistência cultural dos que não dominavam os rumos da religião e cultura.

7. A interpretação supracitada, sobre a resistência cultural, aparece já em Mitos, Emblemas, Sinais (1986, p. 21). Sobre essa obra, pode-se dizer, valendo discordâncias a esse respeito, claro, que a partir dela é que o historiador italiano ocupa-se, em um capítulo, especificamente, em expor e discutir o método indiciário, do qual faz amplo uso em seus trabalhos. Trata-se do capítulo "Sinais – Raízes de um Paradigma Indiciário".

8. Porém, tendo em vista que esse capítulo será objeto de análise dos ogros que ora se unem nesse mister, voltemos ao título conferido a Ginzburg de “precursor da micro-história”. Desde Aristóteles o ímpeto taxonômico ronda as mentes hominídeas. De naturalistas antigos aos modernos biólogos, classificar sempre pareceu vir antes de qualquer crítica, análise ou diálogo. Em condições normais de temperatura e pressão (CNTP) jamais me ocuparia em delimitar, definir ou enquadrar qualquer pesquisador que seja, quanto mais aqueles de quem gosto e respeito, em categorias taxonômicas classificatórias. É tão repulsiva essa prática que exagerei na redundância na frase anterior.

9. O fato é que desde 1981, quando da publicação da série Microstorie, por Einaudi, em Turim e, em parte, a revista Quaderni Storici, pelo Il Mulino de Bolonha, insistiu-se em estabelecer fronteiras para aderentes desse método a partir de um sólido conceito do que seria essa Micro-história. Um breve percurso em busca de uma definição do que seja essa micro-história pode apontar vestígios que indiquem que a definição dessa modalidade metodológica é tão ambivalente quanto não querem aqueles simplificadores que rotulam qualquer coisa que se lhes apresenta para dizer: “ah! Entendi!” ou “tá explicado!”. Os antecedentes que levaram alguns autores a propor tal modelo epistemológico centrado no particular, talvez, sejam os únicos elementos comuns aos precursores de tal idéia.

10. Antes das décadas de 70/80 o que se percebia era a categorização em torno de estudiosos divididos entre marxistas e funcionalistas. Não por acaso, esse período, décadas de 70/80, de pós-colonialismo amadurecido lançou inúmeras questões às potências dominantes e àquelas que emergiam como futuros protagonistas das discussões teóricas das ciências sociais.

11. A necessidade de se deslocar o paradigma historiográfico (até mesmo o paradigma das ciências sociais como um todo) era imperativo frente a novas configurações geopolíticas. A “nova história”, como diria Peter Burke, se define pelo que não é, ou seja, pela oposição àquela maneira tradicional de ver os grandes feitos e grandes personagens históricos. Imersos nesse contexto, os teóricos proponentes de uma micro-história emergem de um marxismo pouco inclinado à metafísica.

12. Sem acumular ranços positivistas, dos quais os cientistas sociais pretendiam desvincular-se, a busca desses novos intelectuais era a de firmar posição de que a idéia de uma pesquisa histórica não poderia ser uma atividade puramente retórica e estética. Nesse aspecto, Vattimo parece fazer coro com essa postura ao recitar a epígrafe de um de seus livros: “a verdade pós-moderna é puramente estética e retórica”.

13. A micro-história então é precisamente a reação ao que os estruturalistas pretendiam levar a cabo, reduzir todo conhecimento histórico ao nível da narrativa. A antropologia também teve em Geertz um contra-ponto salvador, diria eu, ao que Strauss pretendia...

14. Para historiadores e antropólogos, para não estender muito essa introdução ao citar psicologia, sociologia, direito etc, toda a ação social, toda perspectiva de encontro entre culturas e/ou pessoas tem como resultado uma constante negociação, manipulações, escolhas e decisões individuais que interpelam as ciências humanas e sociais a compreender e descrever o comportamento humano. De fato, desde o Renascimento, liberalismo e secularização do saber, sob um ponto de vista cartesiano, era necessário que um novo eixo paradigmático fosse proposto.

15. Assim sendo, “o mais importante era refutar o relativismo, o irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica que interprete os textos e não os próprios acontecimentos”, é isso, caro Giovanni Levi! A partir desse marco epistemológico, o que une toda pesquisa da micro-história é a crença em que a observação microscópica revelará fatores previamente não observados, negligenciados por um olhar mais amplo, geral, focado em escolhas de eventos ou personagens “mais importantes” que o próprio fato em si.

16. Sem dúvida essa afirmação provoca calafrios nos (pós)modernos pesquisadores viúvos do romantismo alemão. Essa breve referência que faço ao romantismo alemão é um suspiro de alívio ao ler o texto de Bruce Malina que identifica um germe nesse pensar alemão.

17. A grande contribuição de Malina está em um estudo perspicaz da linguagem e da lei fundamental da linguagem. Palavras, frases e livros não significam nada, tanto quanto o que o ouvinte casual moderno ou leitor entenderia. “Significado” vem do sistema social expresso na linguagem. Ele propõe que a descoberta moderna de um sistema social antigo qualquer esteja vinculada a um “cenário” necessário para interpretar um autor antigo. Cada autor antigo certamente possuía um, e o intérprete honesto deve lutar para fazer uma réplica disso o mais acurada possível.

18. Então, para perceber esse “cenário” (o mesmo conceito que meu dileto interlocutor desse blog estabelece para as categorias conceituais de “texto/narrativa” em um dos artigos em http://www.ouviroevento.pro.br/) a micro-história como prática procede a uma redução de escala na observação e um estudo analítico do material documental (estaríamos aqui identificando uma “escola” herdeira da redução fenomenológica? Do cartesianismo em sua forma mais radical?)...

19. Com isso, é fundamental dizer que a micro-história não pode ser definida em relação às microdimensões de seu objeto de estudo, mas o método está relacionado, antes de mais nada, aos procedimentos que constituem o trabalho do historiador. Et voilà! Aí está o nascente teórico que marca as várias formas ecléticas de micro-história: a trandisciplinaridade. O fato é que, aqueles que aderem, ao fazer micro-história, estão obrigados a constantes intercâmbios com as ciências sociais e, a partir daí, estabelecer teorias historiográficas sem, contudo, sentir necessidade de se referirem a qualquer sistema de conceitos ou princípios próprios.

20. (Digressão: o parágrafo anterior, sem querer, antecipou o que estaria por trás das palavras de Ginzburg no seguinte trecho transcrito a seguir: “a análise desse paradigma, amplamente operante de fato, ainda que não teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre “racionalismo" e "irracionalismo").

21. Com o perdão de ter contado parte do fim do filme antes da hora, arremato a assertiva de que a micro-história não tem um corpo de ortodoxia estabelecida para dele se servir. Por fim, nesse breve percurso analítico sobre a micro-história, faço coro com Levi: “é auto-evidente e até banal afirmar que as dimensões particulares do objeto de análise não refletem necessariamente a escala distintiva do problema colocado”.

22. Dessa forma, faz-se mister lembrar que a irredutibilidade de fenômenos sociais e da singularidade da existência humana não são explicáveis por amostras “recortadas” da realidade, mas constituem-se pontos de partida detalhadamente analisados com um fim de não negligenciar os fatos mais diminutos que comporão um mosaico analítico mais completo ao remontar, indiciariamente, a História.

23. A intenção de alongar-me em alguns antecedentes e pressupostos da micro-história é a de fundamentar a ambivalência que carrega o conceito ou classificação “micro-história”. Zygmunt Baumann certamente incluiria entre seus exemplos esse modelo teórico como a ambivalência que emerge de procedimentos taxonômicos...

24. Eia, Osvaldo! Acorde, ó tu que dormes! Que me dizes?


DANIEL BRASIL JUSTI


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