domingo, 14 de março de 2010

(2010/001) Transcrição 001 de "Sinais - raízes de um paradigma indiciário" - Carlo Ginzburg


Sinais - Raízes de um Paradigma Indiciário
Carlo Ginzburg


Deus está no particular.
A. Warburg

Um objeto que fala da perda, da destruição, do desaparecimento de objetos. Não fala de si. Fala de outros. Incluirá também a eles?
J. Johns


(A) Nessas páginas tentarei mostrar como, por volta do final do século XIX, emergiu silenciosamente no âmbito das ciências humanas um modelo epistemológico (caso se prefira, um paradigma¹) ao qual até agora não se prestou suficiente atenção. A análise desse paradigma, amplamente operante de fato, ainda que não teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre “racionalismo" e "irracionalismo".

I.
(B) 1. Entre 1874 e 1876, apareceu na Zeitschrift für bildende Kunst uma série de artigos sobre a pintura italiana. Eles vinham assinados por um desconhecido estudioso russo, Ivan Lermolieff, e fora um igualmente desconhecido Johannes Schwarze que os traduzira para o alemão. Os artigos propunham um novo método para a atribuição dos quadros antigos, que suscitou entre os historiadores da arte reações contrastantes e vivas discussões. Somente alguns anos depois, o autor tirou a dupla máscara na qual se escondera. De fato, tratava-se do italiano Giovanni Morelli (sobrenome do qual Schwarze é uma cópia e Lermolieff o anagrama, ou quase). E do "método morelliano" os historiadores da arte falam correntemente ainda hoje².

(C) Vejamos rapidamente em que consistia esse método. Os museus, dizia Morelli, estão cheios de quadros atribuídos de maneira incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor é difícil: muitíssimas vezes encontramo-nos frente a obras não-assinadas, talvez repintadas ou num mau estado de conservação. Nessas condições, é indispensável poder distinguir os originais das cópias. Para tanto, porém (dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros: os olhos erguidos para o céu dos personagens de Perugino, o sorriso dos de Leonardo, e assim por diante. Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Dessa maneira, Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de orelha própria de Botticelli, a de Cosmè Tura e assim por diante: traços presentes nos originais, mas não nas cópias. Com esse método, propôs dezenas e dezenas de novas atribuições em alguns dos principais museus da Europa. Freqüentemente tratava-se de atribuições sensacionais: numa Vênus deitada conservada na galeria de Dresden, que passava por uma cópia de uma pintura perdida de Ticiano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pouquíssimas obras seguramente autógrafas de Giorgione.

(D) Apesar desses resultados, o método de Morelli foi muito criticado, talvez também pela segurança quase arrogante com que era proposto. Posteriormente foi julgado mecânico, grosseiramente positivista e caiu em descrédito³. (Por outro lado, é possível que muitos estudiosos que falavam dele com desdém continuassem a usá-lo tacitamente para as suas atribuições). O renovado interesse pelos trabalhos de Morelli é mérito de Wind, que viu neles um exemplo típico da atitude moderna em relação à obra de arte – atitude que leva a apreciar os pormenores, de preferência à obra em seu conjunto. Em Morelli existiria, segundo Wind, uma exarcebação do culto pela imediaticidade do gênio, assimilado por ele na juventude, no contato com os círculos românticos berlinenses4. É uma interpretação pouco convincente, visto que Morelli não se colocava problemas de ordem estética (o que depois lhe foi censurado), mas sim problemas preliminares, de ordem filológica5. Na realidade, as implicações do método proposto por Morelli eram outras, e muito mais ricas. Veremos que o próprio Wind esteve muito próximo de intuí-las.

NOTAS
(1) Emprego este termo na acepção proposta por T. S. Kuhn, La struttura delle rivoluzioni scientifiche, Turim, 1969, prescindindo distinções e especificações posteriormente introduzidas pelo próprio autor (cf. “Post-script – 1969”, em The structure of scientific revolutions, 2ª ed. ampliada, Chicago, 1974, pp. 174 ss).

(2) Sobre Morelli, cf. antes de tudo E. Wind, Arte e anarchia, Milão, 1972, pp. 52-7, 166-8, e a bibliografia ali citada. Para a biografia acrescentar M. Ginoulhaic, “Giovanni Morelli. La vita”, em Bergomum, XXXIV (1940), no 2, pp. 51-4; ao método morelliano voltaram recentemente R. Wolheim, “Giovanni Morelli and the origens of scientific connoisseurship”, em On art and the mind. Essays and lectures, Londres, 1973, pp. 177-201; H. Zerner, “Giovanni Morelli et la science de l’ art”, em Revue de l’Art, 1978, no 40-1, pp. 209-15, e G. Previtali, “A propos de Morelli”, idem, 1978, no 42, pp. 27-31. Outras contribuições estão citadas na nota 12. Infelizmente, falta um estudo geral sobre Morelli que analise, além dos textos de história da arte, a formação científica juvenil, as relações com o ambiente alemão, a amizade com De Sanctis, a participação na vida política. No que se refere a De Sanctis, ver a carta na qual Morelli o indicava para a cadeira de literatura italiana no Politécnico de Zurich (F. De Santictis, Lettere dall’esilio [1853-1860], a cargo de B. Croce, Bari, 1938, pp. 34-8), e também os índices dos volumes do Epistolário desanctisiano (4 vol., Turim, 1956-69). Sobre o engajamento político de Morelli, ver por ora as rápidas referências de G. Spini, Risorgimento e protestanti, Nápoles, 1956, pp. 114, 261, 235. Para a repercussão européia dos textos de Morelli, ver o que ele escrevia de Basiléia a Minghetti, em 22 de junho de 1882: “O velho Jacob Burckhardt, que fui que fui visitar ontem à noite, deu-me a melhor acolhida, e quis passar comigo toda a noite. É um homem originalíssimo tanto no fazer corno no pensar, e agradaria também a você, mas seria de agrado principalmente à nossa senhora Laura. Falou-me do livro de Lermolieff, corno se o conhecesse de cor, e serviu-se dele para me fazer uma infinidade de perguntas - coisa que lisonjeou não pouco o meu amor-próprio. Hoje de manhã vou me encontrar de novo com ele ... " (Biblioteca Comunale di Bologna [Archiginnasio], Carte Minghetti, XXIII, 54).

(3) Longhi julgava Morelli, em comparação ao "grande" Cavalcaselle, "menor, mas também notável"; mas logo depois falava de "indicações ... materialistas" que tornavam o seu "método presunçoso e esteticamente imprestável" ("Cartella tizianesca", em Saggi e ricerche - 1925-1928, Florença, 1967, p. 234). [Sobre as implicações deste e outros juízos semelhantes de Longhi, cf. G. Contini, "Longhi prosatore", em Altri esercizî (1942-1971), Turim, 1972, p. 117.] A comparação com Cavalcaselle, totalmente desfavorável a Morelli, é retomada por exemplo por M. Fagiolo em G. C. Argan e M. Fagiolo, Guida alla storia dell'arte, Florença, 1974, pp. 97, 101.

(4) Cf. Wind, Arte, cit., pp. 64-5. Croce, ao invés, falou de "sensualidade dos pormenores imediatos e separados" (La critica e la storia delle arti figurative. Questioni di metodo, Bari, 19462, p. 15).

(5) Cf. Longhi, Saggi, cit., p. 321: "Para o sentido de qualidade em Morelli, aliás tão pouco desenvolvido e tão freqüentemente desviado do poder irresistível dos simples atos do 'reconhecedor' ... "; logo depois define Morelli definitivamente corno o "medíocre e nefando crítico de Gorlaw" (Gorrlaw é a versão russa de Gorle, localidade perto de Bergarno onde morava Morelli- Lermolieff).



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